[2018] Resenha "A origem da obra de arte"

 

Sobre a origem da obra de arte

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Tradução de Maria da Conceição Costa. Edições 70: Lisboa, Portugal, 1977.

Andrews Jobim
Estudante de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas

Martin Heidegger (1889 – 1976) foi sem dúvida um dos mais influentes pensadores do século XX. Sua mais famosa obra é Ser e Tempo, na qual propõe uma ruptura na forma do pensar, abrindo um amplo horizonte para as discussões filosóficas se desenvolverem dali em diante. A principal preocupação de sua obra é a questão sobre o sentido do Ser, que estaria presente no núcleo das primeiras discussões da história da filosofia mas que ao longo da tradição teria sido esquecida. Heidegger acredita na necessidade de reconduzir o pensamento a essa questão central para que o ser humano, com uma melhor compreensão do sentido do Ser e sua manifestação na existência, assuma uma posição mais autêntica com relação ao mundo e a si próprio. O método que assume para operar essa virada do pensamento é a Fenomenologia, defendendo que o caminho que vai as coisas tal como ocorrem, sem pressupor nada acerca de sua ocorrência, seria um caminho mais seguro para revelar as manifestação do Ser, e ao mesmo tempo evitar repetir os mesmos erros ocorridos na tradição filosófica.

O livro A Origem da Obra de Arte apresenta uma discussão de estética que se dá sob esse pano de fundo. Heidegger discute as origens da arte, suas relações com a linguagem, sua manifestação na obra e o que diferencia uma obra de arte das coisas de nosso cotidiano. Pressupõe, portanto, o método estabelecido em Ser e Tempo, bem como sua estrutura conceitual, podendo ser uma obra obscura em certas passagens para quem não está familiarizado. Apesar disso, a prosa possui a fluidez de um diálogo, na qual Heidegger nos conduz na apresentação e dissolução dos problemas ao longo do texto. A obra divide-se basicamente em quatro seções: a apresentação do problema, a coisa e a obra, a obra e a verdade e a verdade e a arte.

Ao colocar o problema sobre a origem da obra de arte, Heidegger percebe que o caráter de coisa faz parte da obra de forma incontornável, pois é seu aspecto mais externo, o qual nem a experiência estética é capaz de superar totalmente – trata-se da madeira, da pedra, do som, enfim, de tudo aquilo que materialmente compõe a obra. Também nota o importante papel do artista, que só é o que é a partir de sua relação com a obra e com a arte.

Sua primeira abordagem se dá partir dos estudos estéticos tradicionais, tomando de saída o caráter de coisa da obra. Para isso, observa a manifestação da obra enquanto um objeto comum, como uma coisa que, junto com muitas outras, habita o cotidiano humano: tal como um “[…] quadro […] pendurado na parede, como uma arma de caça, ou um chapéu”1. Contudo não se deve deter nesse aspecto, pois a obra parece manifestar algo de 'outro' junto ao caráter de coisa. Parece ser o caso de que este serve de suporte para o 'outro' que se edifica. Propõe, portanto, clarear o que seja uma “coisa”, examinar o caráter de coisa da obra e verificar se esta de fato porta algo de 'outro' que não o próprio caráter de ser uma coisa.

A segunda seção do tratado, a coisa e a obra, inicia com uma delimitação do conceito de “coisa”, restringindo sua utilização às coisas da natureza e do uso, pois habitualmente não se aplicam nem a Deus, nem a pessoas, nem a animais. As coisas, por sua vez, podem receber tal nome de duas formas, ou como só “pura coisa”, caso em que é apenas uma coisa e nada mais, ou como “já só coisa”, no sentido de algo que desqualificou-se. Esses aspectos são os primeiros manifestados pela própria coisa, mas que em si são limitados, o que estimula o autor a considerar três interpretações filosóficas tradicionais desse conceito, visando clarear o caminho que deve ser seguido.

Sobre a primeira possibilidade, da coisa como substância, Heidegger defende que há um desvio da questão, pois ao pretender falar da coisa e seus acidentes, parece haver uma tentativa de adequar a realidade da coisa à forma do discurso. Tratar a coisa como substância já é um segundo passo, pois para falar dessa coisa há a pressuposição de que essa já se tornou visível de alguma forma.

A segunda interpretação é a da coisa como síntese dos dados da sensibilidade. Nesse caso, assim como no primeiro, parece haver um salto sobre a primeira manifestação da coisa, pois anterior aos dados dos sentidos está a própria coisa – não é o caso de que interpretamos um ruído estridente e a luminosidade de forma isolada, mas sim que percebemos o raio caindo ao longe. Isolar os dados dos sentidos é abstrair.

Já a terceira interpretação tradicional da coisa refere-se ao composto de forma e matéria, reconhecido como o esquema conceitual mais utilizado para a estética, não obstante estar inadequadamente fundado. Para Heidegger é preciso melhor determinar o uso desse composto, pois como normalmente é apresentado, se aplica igualmente a todos os entes, mascarando o caráter próprio de ser de uma coisa.

Se lançarmos a pergunta sobre se a origem do composto se dá na coisa ou na obra, percebe-se que a forma determina a ordenação da matéria para um fim, uma serventia, pois é sempre uma ordenação operada por um criador. Não se aplica, portanto, à obra de arte, uma vez que, apesar de possuir um criador, sua criação visa a autossuficiência, não uma finalidade. Portanto o composto forma e matéria se refere a um tipo específico de coisa: o apetrecho. Cabe pontuar que o composto forma e matéria se tornou aplicável à todas as coisas por conta da influência da fé bíblica nas discussões metafísicas do medievo, dado essa pressupor uma criação anterior de todas as coisas. O contrário é aqui assumido, já que ao deixarmos as coisas se manifestarem em seu caráter cotidiano, não vemos como criador outro ente que não o ser humano.

Rejeitadas as três interpretações da tradição, Heidegger toma a revelação do apetrecho como um aceno do caminho a ser seguido, passando então a considerar o caráter de utilidade que se efetiva nesse. Propõe duas possíveis leituras de um apetrecho (no caso, um sapato) a partir de uma pintura de Van Gogh. Na primeira descreve o sapato como se posto diante de nós, repousando. Tendo uma certa estrutura comum, não apresentará dificuldades em sua descrição. Contudo, com essa leitura fica esquecido justamente o que se buscava, pois é exatamente na serventia que reside o caráter de utilidade.

Em seguida, propõe uma descrição completamente diferente, situando o sapato em um mundo de relações, pondo em atividade seu caráter de serventia e utilidade: “Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. […] No couro, está a umidade e fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai.”2. Os apetrechos, portanto, só possuem sentido em suas relações mais originais, em seu uso cotidiano para a realização de determinados fins. Possuem um aspecto de solidez, enquanto aptos a realização de seus fins, que tende a desvanecer conforme gastam-se.

Com esse exemplo, Heidegger quer chamar a atenção para o fato de que não se trata de uma mera interpretação subjetiva, mas sim de que foi a obra de Van Gogh que abriu as possibilidades para que o sapato adquirisse sentido, revelando seu caráter de utilidade mais próprio. Foi a pintura que desvelou a verdade do ente sapato, isto é, trouxe uma de suas formas de acontecer verdadeiro no interior de um conjunto de significados. Por isso é que não se trata de uma cópia de um sapato particular, mas sim de uma reprodução da essência geral das coisas, pois a verdade do sapato pressupõe uma abertura de seu ser, que inclui o fato de ser um apetrecho. Não se trata de uma adequação, nem de uma ideia geral, mas sim de uma verdade (desvelamento) que é posta em obra.

Na terceira seção, a obra e a verdade, Heidegger aprofunda a discussão sobre a verdade da obra e sua participação na determinação da realidade da obra, pois sendo esta uma manifestação da verdade do ente, sua realidade só tem sentido a partir desta. Reafirma aqui a questão da circularidade da compreensão da obra e da arte, na qual a realidade de uma depende da realidade da outra. Dessa vez, no entanto, o ingresso na circularidade não se dá pelo aspecto de coisa da obra, mas sim pela sua libertação das relações com os entes que não lhe constituem. Em outras palavras, pelo estar-em-si da obra, que se manifesta em si e a partir de si, e que é a mais autêntica finalidade a qual o artista se dispõe. Esse estar-em-si pertence a um horizonte de significados que a própria obra desvela, e que só se sustenta enquanto a obra pertence a esse horizonte. Esse horizonte é o mundo da obra, são as possibilidades de pontos de vista que a obra manifesta a partir de seus traços. Arrancar a obra de seu mundo é violentar o seu repouso em si, reduzindo-a a mero objeto. Na manifestação da obra em seu aspecto cotidiano, Heidegger chama atenção para dois aspectos próprios do estar-em-si da obra: mundo e terra.

Quando, por exemplo, um quadro está na parede de um museu, este não está simplesmente disposto, mas sim instalado. A diferença está no fato de que a obra instala (num sentido de consagrar, erigir) a medida de um mundo a partir da abertura de sua própria afirmação. Em outras palavras, a obra abre possibilidades de relações entre os entes a partir do que está manifestando, ao mesmo tempo que serve de medida dessas possibilidades. De acordo com Heidegger, “Ao abrir-se um mundo, todas as coisas adquirem a sua demora e pressa, a sua distância e proximidade, a sua amplidão e estreiteza.”3. Contudo, a instalação do mundo realizada pela obra é acompanhada por uma produção, pois o mundo que se abre deve se fundar em algo, em uma base. Essa base produzida pela obra, que Heidegger chama de terra, é o que ressai na medida em que a obra se retira. Quando a obra sai da presença para o interior da terra, a matéria de que é feita aparece: a dureza da rocha, o brilho das tintas, a ressonância do som. A terra é o indeterminado que é desvelado a partir da instalação do mundo, é aquilo que em si está aí para nada, mas que é posto em evidência pela obra. Fala-se aqui em produção porque a terra é desvelada relativamente como o lugar em que o mundo é fundado, somente sendo o que é em função deste mundo.

A nível de comparação com o apetrecho, a matéria neste é tratada como excesso, como algo a ser consumido na produção de algo que terá uma serventia. Quanto menos resistência oferecer nesse processo, e quanto menos se fizer presente na utilização do apetrecho, melhor. Portanto, refletir sobre o estar-em-si da obra é pensar a unidade de instalação e produção no movimento próprio da obra.

A unidade dos dois aspectos próprios da obra (mundo e terra) se determina numa relação combativa, não de superação do outro, mas de afirmação de si próprio. A terra tenta arrastar o mundo para seu velamento, para o indeterminado; o mundo busca sobrepujar a terra abrindo-a em toda sua amplitude. Porém é no abandono da própria proveniência (instalação e produção, respectivamente) que cada aspecto leva o outro além de si próprio, pois o mundo funda-se na terra e a terra irrompe através do mundo.”4. É através da instituição desse combate e do estar-em-si que se funda o aspecto de ser uma obra. Um tipo análogo de relação combativa ocorre com a verdade, por isso a afirmação antecipativa de sua relação com a obra.

Clareira” é nome do aspecto possível do homem que o impele a lançar luz sobre os entes, desvelando-os e inserindo-os num mundo que se instala. É o que direciona o homem em sua constante busca por determinação, por efetividade. Nessa luz que lança sobre os entes, tira-os da ocultação e determina-os em sua verdade. O combate original da verdade ocorre entre o surgir e o ocultar, entre o que foi trazido à luz em sua verdade e o que permanece oculto. O surgir refere-se a um mundo, que ao desvelar os entes é instituído, enquanto o ocultar refere-se à terra, revelada contrariamente a partir do mundo. A verdade que se manifesta na obra deve ser entendida nesse sentido, como um desocultar que é mantido na obra. Desocultar não isolado, mas que se dá numa dinâmica de relações dentro de um mundo de possibilidades abertas. “O clareado desta natureza na obra é o belo. A beleza é um modo como a verdade enquanto desocultação advém5.

Para Heidegger, entender verdade como correspondência de um enunciado com um objeto é supor que este se mostre como tal, é supor que há uma via de acesso para a adequação do conhecimento à realidade do objeto. Nesse sentido, verdade se refere muito mais a justeza de um enunciado do que à determinação de um estado efetivo de coisas. Por isso a proposta da retomada do sentido de verdade da palavra grega aletheia é importante, pois definindo verdade como desocultação, atinge-se um nível mais original de sua determinação, da mesma forma que explica como o enunciado pode corresponder de alguma forma com seu objeto. Em outras palavras, o juízo pertence à verdade.

Para a última seção, a verdade e a arte, Heidegger traz o problema da relação da técnica e da obra através da recolocação da pergunta sobre o caráter de coisa da obra: se a obra é uma manifestação da verdade, fica em aberto por que e como é possível essa manifestação.

No núcleo da discussão sobre a obra de arte encontra-se a questão desta ser criada, isto é, da manifestação da verdade ser produzida na obra. Entra em foco então o que a criação significa e qual sua diferença da fabricação de um apetrecho qualquer. Heidegger traz o conceito de técnica (techné) para explicar ambas as formas de relação com o criado. Relembra que tradicionalmente o uso da palavra refere-se tanto ao artista quanto ao artesão, por valorizar o aspecto de manufatura de ambas as atividades. Porém aponta haver um equívoco em tal interpretação, pois techné em sua acepção original se refere a uma produção do ente a partir de sua desocultação, não a uma forma de fazer. O artista compartilha com o artesão a capacidade de trazer o ente à luz pelo seu aspecto a partir de algo já surgido da natureza, ou seja, é a partir da manipulação de um ente já desvelado que o artista e o artesão são capazes de desvelar outros entes. A técnica é um meio para a manifestação da verdade.

O caráter da criação possui duas determinações essenciais: a primeira é a instituição da verdade como combate, como determinação dos limites da desocultação, além dos quais se manifesta a recusa dos entes; a segunda, própria da obra, é a expressa introdução do caráter de criação na obra, que diferente do aspecto cotidiano dos demais entes, chama a atenção o simples fato de que esta seja o que seja.

É a partir dessas duas determinações da criação que se dá um distanciamento das relações habituais e o surgimento de uma busca por sentido para o que foi criado, pois quanto menos relações (aparentes) com os homens uma obra tiver, mais esta destaca-se entre as coisas – mais intensamente manifesta-se o combate entre mundo e terra.

Esse distanciamento é um deixar a própria manifestação da obra como obra, o que Heidegger chama de salvaguarda, e é o que, ao alterar as relações habituais com o mundo, lança o homem no interior da verdade da obra. A salvaguarda é uma insistência na abertura do ente que acontece na obra, é um querer persistir na relação combativa da verdade aberta pela obra, buscando penetrá-la e transcendê-la. Não se trata da mera interpretação do aspecto formal da obra, dado que é a própria obra que determina como sua verdade se desoculta, mas sim de um pertencimento à verdade da obra. São a criação e a salvaguarda que garantem o estar-em-si da obra, ou seja, a manifestação da obra como obra, pois a primeira funda um mundo enquanto a segunda o preserva.

Tudo isso implica que a realidade da obra é determinada pelo seu aspecto de obra, não pelo seu aspecto de coisa, uma vez que perguntar por este é pressupor que a obra é apenas um objeto disponível capaz de gerar efeitos em nós. O caminho proposto inicialmente se mostra incapaz de levar à compreensão da essência da arte. Contudo não foi em vão a discussão, pois além de apresentar as consequências de tal abordagem, obteve-se uma expansão dos conhecimentos acerca do tópico. Sobre o caráter de coisa da obra, primeiro deve-se perguntar pelo caráter de obra da obra, pois este abre o mundo que produz a terra, revelando a coisa.

É a arte que encontra-se na origem da obra de arte, na medida que, ao instituir a criação e salvaguarda, afirma-se como um acontecimento da verdade. Em outras palavras, quando a criação desvela um ente na obra e a salvaguarda expressa um querer originário que sustenta e mantém o desvelamento, tem-se a arte como um movimento efetivo da verdade. Tal acontecer da verdade é por si uma poetização, pois é a Poesia que instala um mundo a partir de si, tomando do habitual a firmeza com que sustenta os entes.

A Poesia desvela e lança no combate o que ela própria faz acontecer, pois é uma forma de nomear que determina o ente no tempo através da linguagem, cunhando a pertença histórica do mundo. Linguagem deve aqui ser entendida como a primeira abertura do ente enquanto tal, como manifestação da verdade lançada no tempo, não como mera forma de comunicação. Poetizar é a projeção do que está fechado (a terra na relação combativa da verdade) para o aberto (o mundo). Provém do nada no sentido de não ser habitual, mas o que faz acontecer não provém do nada por já ter sido produzido pelo mundo que integra. Com isso a Poesia (consequentemente a arte) assume um caráter histórico por se valer do já lançado no tempo para suas próprias projeções.

É através da frase “a arte é o pôr-em-obra da verdade”, afirmada já no início do tratado, que Heidegger principia suas considerações finais. Agora, no entanto, a frase adquiriu uma densidade diferente, expressando muito mais do que antes, dado todos os desdobramentos realizados. A arte é um dos modos da Poesia, na medida que institui o combate entre mundo e terra, bem como o co-pertencimento entre criação e salvaguarda. A Poesia por sua vez é uma das manifestações da verdade na linguagem, pois desvela o ente do fechamento da terra para seu lançamento no mundo. Já ser a origem de algo é determinar este algo em sua instauração. É por isso que a arte também é a origem da obra de arte.

Por fim, a obra “A origem da obra de arte” é uma leitura que requer certo domínio do linguajar do autor para plena compreensão das ideias apresentadas. É recomendável também certa aproximação com as questões ontológicas, tanto da tradição quanto da contemporaneidade. Não se trata de uma obra de fácil leitura, mas que sem dúvidas tem muito a contribuir para os interessados na obra de Heidegger e nas discussões em Estética.

1 HEIDEGGER (1977, p.13).

2 Ibid., p. 25.

3 Ibid., p. 35.

4 Ibid., p. 38.

5 Ibid., p. 45. Grifo do autor.

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