[2018] Mundo e correspondência

 

Mundo e correspondência

Andrews Dubois Jobim

Graduando em Filosofia

A verdade é sem dúvida um dos muitos conceitos problemáticos trabalhados pela Filosofia. É ao mesmo tempo o princípio e o objetivo dos grandes sistemas filosóficos, pois normalmente busca-se partir da verdade para se alcançar a verdade. Não obstante, não há consenso sobre o que cada autor entende por verdade, existindo por isso diversas definições possíveis que integram diversos tipos de sistemas filosóficos diferentes. Entre todas, sem dúvida a mais popular é a da correspondência, presente na maioria das teses filosóficas ao longo da tradição, apesar de implicar grande dificuldades em sua estrutura.

O presente ensaio pretende considerar brevemente a teoria de verdade por correspondência à luz do pensamento de um crítico da sua formulação original. Esse é Nelson Goodman, pensador estadunidense que defendia o irrealismo, isto é, a inexistência de um modo como o mundo é além das descrições que são feitas deste, existindo apenas versões de mundo que a sua maneira tentam descrever a realidade. Para isso, o ensaio será dividido em três momentos: primeiro uma introdução à teoria da verdade por correspondência, pontuando as dificuldades que deve dar conta de responder; em seguida, como Goodman apresenta seu irrealismo; e por fim, como a verdade por correspondência é rejeitada pelo autor com base em sua concepção sobre o mundo.

A teoria da verdade por correspondência é talvez a mais robusta das teorias da verdade, pois dá conta tanto de determinar o que é a verdade, quanto seu critério de correção. Seus maiores desenvolvimentos foram sem dúvida feitos por Wittgenstein e Russell, durante suas fases de atomismo lógico, e cujo núcleo comum será apresentado aqui. Basicamente, para ambos haveria um isomorfismo entre a linguagem e o mundo, no qual as proposições reproduziriam a mesma forma como os fatos ocorrem. Essa ocorrência se daria através de complexos de elementos simples, ou seja, de elementos que conforme se distribuem determinam estruturas complexas. Tais estruturas se dariam da mesma forma na linguagem, pois proposições complexas (moleculares) são determinadas a partir de proposições simples (atômicas). A verdade estaria na relação entre os fatos e as proposições. Para exemplificar, pode-se pensar em uma maquete que reproduza uma escola. A maquete será verdadeira na medida que reproduzir a estrutura da escola em seus mínimos detalhes. Cada mesa, cadeira ou bebedouro que se encontrar na mesma posição em que se encontra na escola fará a diferença para a correção da maquete. Nesse exemplo, a maquete é a linguagem, enquanto a escola o fato.

Existem, contudo, duas dificuldades dessa interpretação da verdade. A primeira é determinar como se relacionam linguagem e fato, pois por mais que seja afirmada uma isomorfia entre ambos, fica em aberto como esta se constitui; por exemplo, o fato de um livro estar sobre uma mesa é descrito de forma diferente do que a proposição que o descreve, pois enquanto o fato conta com dois elementos (o livro e a mesa) a proposição conta com pelo menos três (“O livro está sobre a mesa”). A segunda dificuldade relaciona-se com a determinação dos fatos, pois essa forma de descrever o mundo parece supor um acesso direto ao mundo, o que asseguraria o consenso através do cotejo com a realidade, o que na prática não parece ocorrer pois há desacordos, dado determinadas descrições levarem em conta aspectos que outras não consideram.

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Nelson Goodman apresenta seu relativismo irrealista no artigo O modo como o mundo é. Neste, introdutoriamente ataca a teoria correspondentista de Wittgenstein, rejeitando a isomorfia proposta por este entre linguagem e mundo, afirmando tratar-se de uma confusão entre a forma e o conteúdo do discurso. Para Goodman é um absurdo esperar que porque um sistema representacional possui uma base simples que se complexifica, o mundo descrito por esse sistema deve possuir a mesma estrutura. Sua crítica direta, no entanto, para por aí, pois o objetivo de Goodman nesse texto é outro: pretende afastar uma possível interpretação mística de suas ideias. Para isso, o autor segue de forma crítica o itinerário aparentemente comum às teorias epistêmicas, pois parte do dado, passa pela visão do mundo, por sua descrição, até chegar ao próprio mundo.

Ao contrário de grande parte da tradição, Goodman acredita não fazer sentido discutir sobre como o mundo é dado, pois nada de significativo pode ser dado como resposta. Perguntar se o mundo se dá como um todo ou em partes é irrelevante, pois por mais que seja em partes, estas não são apresentadas isoladamente, nem sequer possuem demarcações visíveis. Em verdade, nem o monismo, nem o dualismo, ou ainda o pluralismo são capazes de dar conta dos problemas que criam, pois não se pode aproximar-se suficientemente da questão para formular-se um juízo sobre.

Quanto ao modo como o mundo pode ser visto, Goodman defende que o apelo à fidelidade da representação não garante um devido acesso ao mundo. Com efeito, cada representação é um ponto de vista do mundo, colocando-o em perspectiva a partir de si própria. Para ilustrar o ponto traz o exemplo de uma fotografia, que normalmente é tomada como a mais fiel representação do mundo, mas que, dependendo do ângulo em que é tomada, pode apresentar grandes distorções. “[…] os modos de ver e figurar são muitos e variados; alguns são fortes, efetivos, úteis, intrigantes ou sensíveis; outros são fracos, cômicos, desanimados, banais ou confusos. Porém, mesmo se todos os últimos fossem excluídos, ainda assim nenhum dos outros pode fazer uma boa defesa de ser o modo de ver ou pintar o mundo do modo como o mundo é.”1

Ao tratar da forma como o mundo deve ser descrito, chama atenção para a tendência equivocada que temos de pensar a descrição verdadeira como aquela que espelha fielmente a realidade. Com efeito, nem as descrições verdadeiras, nem as falsas, chegam sequer próximo de reproduzir o mundo, pois, citando o exemplo do próprio autor, a frase “está chovendo” em nada se assemelha com uma tempestade. Por mais que se objete que um sistema possa descrever o mundo, essa alternativa é falha pois considera elementos que não pertencem ao mundo: fatos básicos, elementos simples, etc..

Finalmente, Goodman se pergunta sobre como o mundo é, uma vez que não faz sentido perguntar sobre como se dá, ou sobre uma visão fiel desse, ou ainda sobre uma descrição verdadeira. Em outras palavras, nada parece levar ao modo como o mundo realmente é. Isto justamente é o que a primeira vista parece aproximar Goodman de uma perspectiva mística, pois esta defende justamente a incapacidade de expressar a forma efetiva do mundo. No entanto, isso é uma forma de absolutismo, e o que Goodman defende é justamente o contrário, um relativismo. Para ele não existe um modo como o mundo é, mas sim diversos modos possíveis, expressos por cada representação ou descrição verdadeira. “Há muitas descrições verdadeiras igualmente diferentes e verdadeiras do mundo, e sua verdade é o único padrão de sua fidelidade.”2

Apresentada a forma como Goodman considera a expressão do mundo, cabe retomar a discussão sobre a teoria da verdade, reconsiderando seus problemas à luz do que até aqui foi exposto.

Para Goodman é preciso repensar o que é entendido por verdade, pois esta não pode ser aplicada à todos os modos possíveis de expressão do mundo, mas apenas aos enunciados descritivos. Expressões como a pintura ou a escultura não possuem valores de verdade, apesar de cobrarem um critério de avaliação. Tal critério seria o conceito de correção, o qual estaria de fundo nos modos de expressão do mundo, inclusive dos descritivos3, estando diretamente ligado à estrutura desses modos. Tudo isso, com efeito, é complementado com outra concepção de conhecimento que, ao invés de limitar-se a determinação de proposições verdadeiras, é ampliada para uma noção mais compreensiva, de reconhecer aspectos ainda não percebidos no mundo. Constrói-se assim a impossibilidade de pensarmos uma teoria da verdade por correspondência nesse cenário, principalmente por estarem em jogo aqui modos de expressão do mundo não-descritivos, como o estético. Vejamos a seguir.

O isomorfismo entre linguagem e mundo defendido pela teoria da correspondência é rejeitado por Goodman, que defende justamente um convencionalismo dessa correspondência. É basicamente o problema não respondido da relação entre linguagem e fato, que permite a discrepância entre a descrição de um livro sobre a mesa, e o fato do livro estar sobre a mesa. O mundo também não seria constituído por elementos simples agrupados em complexos, pois não há mundo além das expressões que são feitas desse, sendo o atomismo lógico apenas uma dessas expressões. Também a determinação do fato, que na teoria da correspondência é pressuposta através de uma não explicada revelação do modo como o mundo realmente é, para Goodman não é possível, pela mesma razão anterior: o mundo não possui um modo próprio.

Com isso, pretendeu-se mostrar como o sistema de Nelson Goodman sobre a estrutura do mundo e suas descrições trataria uma concepção de verdade como a da correspondência. Apresentou-se a formulação mais sólida dessa teoria justamente para mostrar a força da posição de Goodman, bem como a insuficiência dos critérios de verdade para formas de expressão que não a descritiva.

Bibliografia:

CARRION, Rejane Maria Machado. Mundos e versões: verdade, correção, credibilidade. Revista de Ciências Humanas, v. 3, n. 6, p. 105-117, 1984.

GOODMAN, Nelson. Linguagens da arte. Lisboa: Gradiva, 2006.

GOODMAN, Nelson. O modo como o mundo é. Tradução de Celso R. Braida e Noeli Ramme. Disponível em: < https://pt.scribd.com/document/141196817/22-GOODMAN-Nelson-O-Modo-como-o-Mundo-e >

HAACK, Susan. Filosofia das lógicas. Unesp, 2002.

NETO, Emane Guimarães. A versão de mundo de Nelson Goodman. Primeiros Escritos, n. 5, p. 55-61, 2017.

RAMME, Noeli et al. O pluralismo de Nelson Goodman: o papel da percepção e da linguagem nos múltiplos modos de construir mundos. 1999.


1GOODMAN (1972 p. 04)

2Ibid. (p. 05)

3Ou seja, Goodman submete a verdade à correção.

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